setembro 02, 2006

Grã Decisão: Viradas



- Gol nada... É de lei. Tempo jogado: quem não faz, leva. Se arrebentou o América, danado. O diabo esfregava o olho e o Evaristo, o tal do..., ciscou – imagine, quarentetrês, segundo tempo –, sentou o pé, fora da área. Pompéia, contido no susto, atrasou o voo do Constellation, o desespero no braço esticado. Um a zero: chorado, mas foi... Não me dissera isso meu pai, do Flamengo ganhar... Dos pintos, tá bem, o primeiro milho: deve ter dito...
Lembro não. Nem do jogo. Li no jornal, há pouco. Sô sabe, escasseiam os detalhes da mente. Cinquenta anos agora, 1956 foi ano marcante mermo... Rosa até desabrochou, já li demais... Digo: sabia não, essa da final de 55 em 56... Vinha desd’Agosto, exagero de campeonato esticado, só ‘cabou em Abril. Três turnos e melhor de três. E o Flamengo na ganância do tri. Promessa de beira de caixão... Sério! Há pouco morria, em decisiva cesta vitoriosa de basquete, Gilberto Cardoso, o presidente. É... Paixão faz mal ao coração...
O tri do Fla, era treta?... Por meu pai morriam espetados no tridente. Achei que sim: endiabrado, o América. Me catequizava, nada esportivo, meu pai... Ganhei escudim. De alfinete grosso, pontudo, podia fazer furo no peito... Pai me espetava na camisa, jeitoso. Redondim, o escudim, o do América: farol vermelho, risco branco à volta, sigla AFC ajeitada dentro, letras retas mesmo nas curvas. Ah, ô... O do Flamengo, não. Travoso, ponta de faca afinando pra baixo, faixa preta e vermelha, e outra e outra, como se não parasse... No canto do canto um CRF engrunhado, pontas das letras entortadas pra dentro. Sincero? Uma angústia...
O segundo jogo? Domingo seguinte. Tempo, de algum jeito, passou no meio... Ouvi no paralelepípedo da rua, vizinho botava o rádio na porta. “Será diferente, pai?”... Olha só a virada! Acertaram em cheio: deram de cinco! Sô, cinco a um, num é muito?... Americão tinhoso, galhardo mermo!... Cinco... Cinco anos, eu... Ah, há cinquenta... Se fiquei contente?... Lembro não. Se era América? Era?... É... Não de todo... Até não era. Meu pai me fazia ser.
Podia ser outra coisa... Lembro de raiva escondida. Penso no corte. Corte de cabelo, o senhor sabe, um topetinho. Cabeça raspada, o tufo de cabelo no cocuruto. Hoje, tanto faz. Pra mim, era castigo. Ranzinzice de pai velho, a cara amarrada... Eu? Quinto filho. Descrevo, se sei: olho vivo, dois dentões na frente, calção de elástico, camisa de botão e bolsinho, muito antes da camiseta... Os irmãos, nenhum americano. Escapuliram... Meu pai? Calça de pano riscado a giz, camisa apertada, mão calosa... Motorista. Caminhão. Diabos!... Cinco a um. Os cinco gols, cada atacante carcou, manos, um: Canário, pianim, pisando leve; Romeiro, chegado nas graças; Leônidas, bom cabeceador, o que chamavam da Selva – não aquele da Silva, fera dos anos 40 –; Alarcón, azougue, de dez nas costas; e Ferreira, que batia forte.
Já era, o Fla?... Ou viraria o demo o Mengo, um demo crasso?... A final: quarta à noite. Não sei se ouvi, sei o que leio... No Fla, o “ténico” (a fala do meu pai...) Fleitas Solich, bruxo paraguaio autêntico, diz a Dida: "tu vás a jugar mañana". No gol, Chamorro ladrando a bola. Repete a defesa à direita, o cangaceiro Tomires e Pavão, espécie de lotação, sem pena. Entra Servílio, pra garantir pelo alto, e continua Jordan, no lado sinistro. A ponta extremada de Joel pra lá, a formiguinha recuada de Zagalo pra cá. Dequinha e Duca costurando pelo meio, o pivô Evaristo no miolo. E, então, à frente, Dida, de dez.
No América, dez é Alarcón, que azucrina. Só que Tomires, aos dezoito, indo com fome na bola – havia, no Flamengo, um pacto? – atomiza o tornozelo dele. Mário Vianna apita a falta: mas, que adianta pro América?... Inferno é onde o diabo cai: manquitola Alarcón, sai de campo aos trinta e poucos. É 4 x 1 no final. O Maracanã, cruel, ulula...
Outra virada! No futebol até Deus se aparvalha. Dado o dado, Dida vira o dito o cujo, do qual se ditam, por décadas, dicas? Deu o quê?... Que quê baixou no baixinho das Alagoas?... Dida, mal sabendo de si, se desembesta, o súbito. Dos gols, três dele. O outro quase, contra. E pronto: cai de quatro o América. Rubro de raiva, o Mequinha ainda viceja.
Pacto, se se preza, transpassa. Na noite, caminhos abertos, uniformes suados de bandeiras da vitória, a cambada do Fla (benquista, diga-se) ruma a Botafogo. Perdem uns a cabeça, pulam do cemitério (São João Batista acata) o muro, jogadores deixam no túmulo do antecipado morto, presidente de coração fanático, arre!, as faixas de tricampeão.
O coração é vermelho, o mundo não... Não para de cambiar de cor, nem quando o sol se põe, um vermelhão... Rosa também, pintando o branco das nuvens. Negro, o que do outro lado se levanta. Daí, nuances, misturas, viradas... Decisão, pro mundo, pros tempos, é que: ser tão, tão vasto, é bom! (Ah, quê? Por que conto assim, por quê?... Homenagem a troar na cachola: o pai, o Guima e o espírito Mengo!... Essas coisas... Bizarrias.)
Manhãzinha, a cidade boba, dia doradim, Rio esbaldado, entendo melhor as viradas novas, até aprendo... Meu pai? Viajou, acho... Demorô... Eu queria saber: se o América é diabo, Flamengo é deus?... Lhe confesso, pergunto agora. Quando, então, não sabia. Foi decepção, nomeio assim?... Sei que: aos cinco anos, não se tem fé. Eu teria que ter?...
Meu pai quieto. Lembro que falei “Flamengo ganha...”. Cuidadoso, desenterrei do peito o escudim. Vermelho, devolvi. Não esqueceu, jamais, sempre dizia até se ir... Eu, se tanto mudei, por certo, também não esqueci: sigo flamengo.
No final, bem dissera o... , ele: “Existe é homem humano. Travessia.”

3 comentários:

Anônimo disse...

É incrível!É como se eu estivesse assistindo as cenas,como um filme, é o que é mais intrigante, sentindo todas as emoções dos personagens.E quantas viradas!!!Do jogo à existência.Do menino ao homem.E por aí vai... e vc.de olhos brilhantes e sensíveis iluminando vivências.Parabéns!!!

Anônimo disse...

salve, mermão... gostaria de manter contato pois estou escrevendo uma materia sobre gilberto cardoso e quero muito citar seu texto...

atenciosamente,

conradrose@hotmail.com
21 9389 5196

Frederico Mendes disse...

Maravilha de texto, Guina. É emocionante, poético, nostálgico, sucinto, perfeito. Não sabia que o excelente fotógrafo escreve tão bem também, parabéns, para o bem.